Vocês dormiram bem essa noite?

Observatório Psicanalítico – OP 387/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.

Vocês dormiram bem essa noite? O que acontece com as pessoas que ficam?*

Gizela Turkiewicz e Helena Cunha di Ciero (SBPSP)

11- xxxx x769 GIZELA

Vcs dormiram bem essa noite?

Não estou conseguindo nem pensar nisso

Eu não consegui ler nenhuma dessas notícias

É desesperador pensar que você entrega o filho na escola pra ser cuidado e dá uma merda…

Não consigo ler

Não dá

Eu tb tentei fugir de td

Mas mesmo assim me pegou

Nem tinha entendido que era outro ataque, achei que era o mesmo do anterior

Deixei os meninos na escola e chorei

Quando eu leio as notícias, crio uma defesa que é ficar encontrando pontos na história que me protejam

Eu fiquei com a imagem das professoras que imobilizaram o que matou a colega delas e impediram massacre maior

E com a de SC que trancou as crianças num banheiro quando percebeu o que estava acontecendo

Elas se tornaram minhas heroínas.

Logo cedo, no grupo de amigas, mães, parceiras de trabalho, a notícia de mais um atentado em uma creche seguida deste diálogo. Estou na mesa do café da manhã com meus filhos, preparando-os para ir à escola. Tento esquecer o que li e não respondo de imediato. Mas não consigo.

No caminho, começa a notícia na rádio. Quando percebo do que se trata, desligo rápido, mas não o suficiente para que não seja dita a palavra ATENTADO, ainda que sem a continuação de onde ele ocorreu.

Mãe, o que é atentado?

É um ataque que vem de surpresa, de susto. Uma coisa que ninguém espera.

Seguimos e meus filhos entram na disputa diária de quem escolhe a música primeiro. Neste dia, isso me acalma. Mas não me lembro da canção que ouvimos, tamanho o barulho interno.

 

11 XXXXX666 HELENA

Não podemos falar. Falar pode aumentar. Não podemos dar palco para o horror.

Mas o mal é tão poderoso que acordei com as mensagens das amigas no grupo.

Não consegui dormir, disse uma. A outra: Tem uma janela de contágio, não podemos dar força para isso.

Desligo o celular, tenho uma consulta médica. No elevador, uma desconhecida:

Vim chorando no ônibus. Pensando no que aconteceu. Como pode?

Olhei para baixo, só respondi: Triste demais.

Fujo pela porta do elevador. Não quero falar sobre isso. Não consigo. Se eu falar vou ter que assumir que aconteceu. Como pode?

Na saída do prédio, o mundo funciona e as lojas abrem, e as escolas têm crianças com mochilas coloridas na porta. Desvio minha revolta. Nenhuma música no rádio serve. Desligo. Mochilas voltam em forma de pensamentos. E me lembro que li sobre um pai que voltava para casa só com a mochila do filho. Não terminei nem o primeiro parágrafo. O horror, a banalidade do mal, o medo do contágio. Tem um tijolo na minha garganta. Uma mãe foi trabalhar e voltou para a casa sem um pedaço de si.

Na mesa do café, o jornal. Não abro. Fui pega no susto mais uma vez: enquanto tiro o pão de torradeira, distraída, minha filha aprendendo a ler, lê a primeira página que estava em cima da mesa. Vindo da sua boca ficou ainda mais funesto. “Atentado”, ela lê em voz alta. Já não dava para mudar de estação. Uma mochila de pesar toma conta de mim.

Mamãe, como mataram as crianças?

Preciso responder rápido. O que dizer? Para ela e para mim? Então eu choro. E da minha boca sai um muro de tijolos, entre as torradas e o café.

Qual o destino possível para as palavras que não podem ser ditas? Crianças e adolescentes morrendo, professores que se tornam alvos, jovens que planejam atentados, e qual seria o espaço de elaboração possível para tanta dor, tamanha tragédia?

Nos últimos oito meses aconteceram dez ataques em instituições de ensino no Brasil, nos vinte anos anteriores a este período foram doze (Dados do Podcast café da manhã da Folha de São Paulo de 06/04/2023, que cita estudo da UNICAMP e UNESP). A escola que outrora era um lugar seguro, lugar onde muitas crianças brasileiras fazem sua única refeição ao dia, que com todas as suas idiossincrasias e disparidades era a possibilidade de muitas mulheres saírem para o trabalho certas de que os filhos estariam bem, torna-se um campo minado. E se algo acontecer?

Em 2020, o curta metragem de animação vencedor do Oscar mostra, em 11 minutos, a história de uma família dilacerada por perder a filha em um atentado. Depois do que aconteceu, eles não podem mais conversar. Um quarto vazio, muitas lembranças e o silêncio. Eles se despedem dela, que vai para a escola pela última vez, como se fosse apenas mais um dia. O que acontece com as pessoas que ficam? Instantes antes de ser atingida, ela escreve para os pais “se algo acontecer… te amo”, é o título do filme, que tem a bandeira dos Estados Unidos como uma das únicas imagens com cores da animação em preto e branco. Columbine não é mais terra estrangeira. Columbine is nearby.

Não, não é apenas lá que isto acontece. Está perto de nós, muito perto, no bairro vizinho, na rua de cima. Impossível não pensar que políticas que facilitam o acesso a armas, que foram implantadas no Brasil no último governo, não corroborem e instrumentalizem estes acontecimentos. Pelo contrário, a correlação é fácil e óbvia. Mas é preciso ir além, e colocar a psicanálise para pensar sobre do que se trata este contágio, e se há algo que possa ser feito para freá-lo.

Freud, em “Psicologia das massas e análise do Eu”, propõe que quando parte de uma massa, o Eu se dilui no todo, numa identificação total com o líder, e age de acordo com o movimento da massa, perdendo seus limites. No entanto, nos episódios que vimos acontecer nas escolas, em geral os indivíduos agem sozinhos ou em pequenos grupos. Onde está o líder? Quem ele é? Cabe nos perguntarmos: em que momento se dá o contágio, uma vez que quando o atentado acontece, não tem mais volta, não há pensamento que dê conta? Sem pensamento não há como conter o ato, disso sabemos.

Nos últimos tempos, temos observado uma escalada de intolerância e de radicalidades de múltiplas ordens espalhadas pelo mundo, como uma outra pandemia que se passa no subterrâneo, e só tomamos conhecimento quando a onda está grande demais para que possa ser contida.

Repete-se esta dinâmica nas escolas, nos grupos de adolescentes e jovens, e nas redes sociais. Se pararmos para pensar, vivemos em bolhas, e assim como algumas delas nos protegem (ou nos iludem), outras podem se estabelecer como núcleos de intolerância e de violência, sem contato com outras realidades, naturalizando-se o terror que só conhecemos de maneira explosiva. Algo que ninguém espera. Há uma onda de ódio e desprezo pela vida que vem sendo disseminada, e toda uma geração acomodada na violência. Há uma juventude ávida e desesperançosa consumindo conteúdo intoxicante, violento, bárbaro e cruel. E essa onda só cresce. Há algo sendo levado nessas mochilas que é pesado demais e está a ponto de explodir. O que será que esses autores de atentados tão jovens revelam sobre o ruidoso movimento da violência? Atos revelam sintomas.

Mesmo para escrever esse ensaio, nos vimos tomadas pelo medo. Medo do que essas palavras poderiam despertar, liberar, medo de que contaminem. Porém, é pelas palavras que sabemos trabalhar procurando escutar o que é dito e o que se cala, o que se passa nas entrelinhas. E o pesar é grande demais para não se pensar. Como transformar palavras-dinamite em palavras diamante? Como usar os tijolos indigestos como material de reconstrução?

Quando duas crianças de casas diferentes pronunciam a palavra atentado no café da manhã entre a manteiga e a torrada, há um sintoma que grita. É hora de pensar em como furar a bolha com uma delicadeza consistente.

Há espaço suficiente nas escolas, em nossas casas e na pólis para lidarmos com esse peso? E amanhã? Como vão chegar os professores e alunos, diante de carteiras e parquinhos vazios? Que palavras temos para acolher aqueles que ficam? O que acontece com as pessoas que ficam? Quanto pesam estas mochilas e de quem é este peso? Como transformar janelas de contágio em janelas onde entra a luz?

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

*Nosso agradecimento às amigas Berta Hoffman Azevedo e Marielle Kellerman Barbosa que partilham as alegrias e angústias de ser mãe, de ser psicanalista, que nos formam, nos ensinam a sustentar, conter e sonhar, todos os dias, no chat de Whatsapp desde 2017.

Categoria: Política e Sociedade

Palavras-chave: psicologia das massas, atentado, infância, violência, elaboração

Imagem: Banksy. Sem título. Divulgada  em 13/02/2020

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