Ao caminhar pela manhã, enquanto ouvia Ruggero Levy – “A Polifonia da Psicanálise Contemporânea: As Múltiplas Linguagens do Homem” – no podcast Talks On Psychoanalysis, falando do trabalho do analista como construtor de andaimes de pensamento, me perdi entre algumas imagens e questões.
Como construir andaimes em nossos pensamentos num momento em que tudo parece despencar? Falta insumo, falta vacina, falta empatia. Não há um só andaime de esperança que atualmente nos sustente.
Por vezes, ler o jornal dói. Em cada página, a sensação que fica é de que pela manhã somos acordados com um balde d’água gelada, torturados. A chacina de Jacarézinho, 70 milhões de vacinas que não chegaram, CPI da COVID, novas variantes, o menino Henry, vacinas vencidas, vacinas que não foram compradas, vacinas desprezadas.
“E daí? Não sou coveiro.” O medo do colapso é real, coveiros somos nós, afinal quase todos que eu conheço me contam do luto entrando em suas casas, atualmente, seja pela janela, pela fechadura, ou pela sala: Um tio, um primo, um pai, uma avó, uma amiga.
Por onde recomeçaremos e com que esperança reconstruiremos o que sobrou? Como voltar a sonhar em tempos em que nos anestesiamos diariamente para dar conta de sobreviver?
A fila da cesta básica da Igreja ao lado do consultório cresce semanalmente. Outro dia, um homem dessa fila, ajoelhou-se na frente do meu carro pedindo ajuda. Ele despencou, numa fração de segundo, mãos em prece: “Me ajude”! Ouvi sua voz, mesmo com o vidro fechado. Já a paciente seguinte, passou a sessão inteira se queixando que não poderá ir para a Trancoso com as amigas na semana de festas das férias: “As festas foram canceladas, revoltante!”, ela dizia.
Como caber no peito duas experiências tão antagônicas que se deram em menos de 15 minutos? Penso, durante a sessão. Há uma distância segura possível, onde possa me apoiar e seguir trabalhando, sem atuar, ou me sentir culpada pelo privilégio de ter um trabalho? Reflito, para não despencar. Concluo que é um retrato vívido do meu país atualmente: miséria e descaso.
Sim, foi Freud quem disse que somos constituídos por uma série de lutos, mas a impressão que tenho é de que esse luto não se conclui nunca. Estamos há muito tempo nessa neblina melancólica e acinzentada que se tornou nosso país, vivendo um dia de cada vez, e cada vez mais perigosamente adaptados a essa desesperança que nos assola.
Nos acostumamos a não fazer planos, a não sonhar. Assim como os personagens de Macondo de “Cem anos de Solidão”, de GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2014) que quando acometidos pela peste da insônia, param de sonhar e entram num estado de hipervigilância. Estamos o tempo todo de pé, a postos. Contaminados pela peste do desamparo.
Eis o balde d’água gelada matinal: “inútil dormir que a dor não passa”, cantou Chico. Nos habituamos à dor, aos números, à saudade. Nos habituamos, ainda que indignados.
Como elaborar tantas faltas, tantos buracos? (Escrevo e me lembro das valas de Manaus, terra árida, infinitos buracos sem contorno.)
São incontáveis as cenas impossíveis de acomodação na mente. Caminhões de caixões na Itália. O papa rezando missa sozinho, enfermeiros sendo filmados tirando vacina de idosos. Um líder de um país transbordando ódio, mais de 530 mil mortos. Apagaram o cristo redentor há algumas semanas.
Em alguns momentos, me pego refletindo como será que estaremos quando nos encontrarmos novamente. Por vezes, lembro-me da cena do personagem do filme “Cinema Paradiso”, voltando para a cidade de origem, reencontrando-a esvaziada e desvitalizada. Espero que possamos de fato nos abraçar num verdadeiro reencontro. Sem medo. Encostar cotovelo não é abraçar. Sorrir de máscara é não poder compartilhar alegria.
Meus filhos se acostumaram a ver a avó de longe e dela manter uma distância segura. Ela sempre esquece, num primeiro momento, que não pode abraçá-los, e abre-lhes os braços, instintivamente. Eles, cautelosos, dão um passo para trás e me olham certos de que estão sendo obedientes. Hoje não abraçar os mais velhos é sinal de respeito e zelo.
Na semana passada, não resisti: era aniversário de 82 anos de minha mãe e enfiei as crianças numa capa de chuva para que pudessem abraçar a avó. Percebi a emoção que ela sentiu ao abraçar o corpinho infantil dos netos: “Como vocês cresceram nesse ano”, ela disse. Eles cresceram, ela está mais velha. O relógio teima em correr, o tempo passa sem se acomodar, ele não se afeta pela Pandemia. Esse sim, corre com liberdade.
Comovida em silêncio, ao testemunhar esse encontro, lembrei de Tom Jobim: “Dentro dos meus braços, os abraços hão de ser milhões de abraços, apertado assim, colado assim, calado assim”. Um ano de crédito de abraço foi pago ali, naquele instante. Sorri, aliviada, pensando que não deixava de ser uma cena pela qual lutei nesse tempo todo – e fiquei grata também, em nome dos que não puderam ter essa mesma sorte pois perderam seus familiares para a Covid.
Subi novamente no andaime, olhei para o céu com medo, mas vi menos nuvens e algum raio de sol. Olha, isso é felicidade, lembra? Fiquei contente. Mas melhor não me acostumar, pensei na sequência. Vai que pegaram algo na escola… É este meu devaneio no fim do dia, quando me percebo assolada pelo medo que costuma me visitar de noite. À noite todos os gatos são pardos e todos os vírus invisíveis se agigantam.
Outro dia, antes de dormir, minha filha pequena começou a chorar copiosamente. Reclamou da saudade dos amigos, da professora de ballet, da falta de sua rotina e, finalmente, do quanto detestava usar máscaras: “eu vou ficar banguela e nem vou poder mostrar para ninguém, mamãe, vou estar de máscara.” Estávamos as duas no quarto escuro, e me vi também chorando em silêncio. Minha saudade é tão parecida com a dela que não sei se consigo consolá-la, pensei, impotente. Segurei sua mão e disse que estávamos juntas e que eu sentia o mesmo que ela. (Essa frase eu tenho usado muito no consultório também).
Poder compartilhar o medo de mãos dadas com alguém também pode ser um andaime. E talvez estejamos fazendo isso com os pacientes, na compreensão que lhes oferecemos nesse momento tão obscuro. Oferecer um andaime, nesse abismo que estamos vivenciando, pode ser uma linha fina de esperança.
Nessa noite de choro da minha filha, adormeci ao seu lado e sonhei que ela havia sido levada por uma cachoeira, enorme. Acordei assustada e me lembrei de um texto que escrevi certa vez, no qual comparava o trauma a uma tromba d’água, dado o afluxo de excitação para o aparelho psíquico. Minha filha pequena desaparecendo numa tromba d’água. Acordei, que alivío! Acho também que já sei o que meu sonho quer dizer. O gato da compreensão é um bichano mansinho.
Subo outra vez no andaime. Estou acordada, estamos despertas, estamos a salvo. O jornal ainda não chegou, os medos de ontem eu já conheço. E a eles sobrevivi, ainda que duramente. Os de amanhã ainda não chegaram. Ainda.
Mas, inevitavelmente, antes de trabalhar, vou passar na frente da tal Igreja. Não há andaime que me desvie desse caminho.
*SAFRAN FOER,J. Extremamente alto, incrivelmente perto. Tradução Daniel Galera. Rio de Janeiro, Rocco,2006
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem: O equilibrista, Philippe Petit
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