ANY GIVEN THURSDAY

Manhãs de quinta

Um de meus maiores prazeres na vida sempre foi acordar. Desde mocinha eu gosto de dormir cedo, para chegar logo a primeira hora da manhã. Gosto do despertar de um dia, o céu claro amanhecendo varrendo os pesadelos noturnos.

Toda manhã sempre teve cheiro de promessa. A primeira hora do dia sempre me pareceu encantada, a hora em que tudo pode acontecer. É quando nos movimentamos, enfrentamos, escolhemos viver a vida real ao invés do mundo dos sonhos.

É preciso uma dose de coragem para deixar o conforto dos lençóis macios.

Jamais perdoarei a pandemia por ter me tirado a doçura de despertar.

O jornal na quinta passada tinha tanto luto, que achei melhor fechar. Me recuso, logo existo, pensei. Nós psicanalistas, sabemos bem que negação é antes de tudo, mecanismo de defesa. E essa história do menino Henri? Não consigo. Falta insumo. Falta vacina, falta empatia, falta emprego, falta comida. São tantas as faltas. Eu mesma poderia fazer um inventário de saudades.

Mas algo me faz insistir um pouco, quando passo pela parte de Cultura e encontro fotografias do meu antigo companheiro de café da manhã, Contardo Calligaris. Era uma linda carta de sua mulher, tão genuína, tão verdadeira, tão grata que logo guardei tudo que ela escreveu, na trama de meus pensamentos. Me agarrei com força naquela história de amor. Tinha uma foto de família num balão colorido, um eu te amo em grego antigo, uma dor, um vazio, um desabafo. Fico tomada pela beleza da leitura e já me sinto relativamente melhor da poluição de tristeza das notícias diárias.

Um bom encontro faz mesmo a gente subir num balão. Em seguida penso: Nem a morte rouba a beleza do amor. Esse é o sentimento da resistência, de poder. Lembrei-me de uma frase dele, antiga, que eu sei de cor: “Amores são como a vida, valem a dor que seu desfecho triste nos dará um dia.”

Foi nessa semana, ou na outra – já que todas tem sido iguais -que eu li um artigo de Psicanálise que dizia que AMOR era o contrario DA MORTE. E Quintana dizia que era bom morrer de amor e continuar vivendo.

Então, decido que caminhar é o melhor negócio, pelo menos naquela manhã. Recebo uma mensagem de minha melhor amiga: “Vem caminhar aqui na Honduras”.

Saio com pressa, tênis, máscara. Com ela eu gasto meu “vale gente” na pandemia sem culpa nenhuma. Tem gente que é vital pra gente, feito oxigênio.

Enquanto estamos juntas o tempo para.Seguimos discutindo sobre os lutos todos da pandemia, sobre os pais que estão envelhecendo e o sentimento de desamparo de acompanhá-los assim, sobre o crescimento dos filhos, sobre o fato de que hoje gostamos mais de caminhar na rua do que tomar um chopp – como fazíamos aos 20 anos, sobre o ex namorado que engordou, o que morreu… (Propositalmente não há um ponto nesse parágrafo pois é mesmo um sem fim de assunto) E nessa caminhada, lá pela altura do número 350 eu mostro a ela algo que havia visto na semana anterior:

‘Olha bem , Carol, vem aqui, no meio da rua. Vem pra direita, olha bem nessa janela dessa casa, no segundo andar. Consegue ver? “

Ela diz que não, está sem óculos.

Eu insisto: “Vem para o meio da rua levanta o pé, fica parada assim ó, está vendo? Olha o que está escrito, ali naquela parede daquele quarto, com tinta preta grossa e letras de forma : A VIDA É TÃO RARA”

Ela então me pergunta:

“Como você conseguiu achar isso, amiga?”

E eu respondi:

“Não sei bem, mas eu achei. Vi uma mancha preta na parede e quis saber o que era. Aí levantei o pé e vi. Aí lembrei que essa frase é daquele cantor, Lenine. E a próxima estrofe da canção dizia: ENQUANTO TODO MUNDO ESPERA A CURA DO MAL, E A LOUCURA FINGE QUE ISSO TUDO É NORMAL, EU FINJO TER PACIÊNCIA. Bonito né? “

Sorrimos. E ela:

“Amiga ,eu não sei como você acha essas coisas.”

“Também não sei. Mas eu faço muita,muita,muita força, te garanto”.

Lembrei do Leminski dizendo: Basta um instante e você já tem amor bastante. Amor o suficiente para aguentar mais um dia, tentando transformar os borrões pretos em poesia.

E encontrar com a poesia é também ver um balão colorido atravessando o céu.

Mesmo precisando fazer força para achar.

Helena Cunha Di Ciero

Psicanalista

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