Observatório Psicanalítico – OP – 323/2022
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
A psicanálise como campo de centeio
Helena Cunha Di Ciero (SBPSP)
“Fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio … Milhares de garotinhos, e ninguém por perto – quer dizer, ninguém grande – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer!” – O Apanhador do campo de centeio. J.D Salinger
Você soube de mais um suicídio de adolescente? 13 anos. Sofria bullying, tal qual Hanna Baker de 13 Reasons why, série da Netflix. 13. Número de filme de terror. Lembra também aquela história aterrorizante, da Carrie – a estranha, ambiente escolar hostil. Você lembra? O filme é antigo, mas o enredo segue atual. Um grupo pouco empático, uma dor sem nome, a solidão dos que se sentem invisíveis. Disseram que o vídeo da mãe, chegando no banheiro e encontrando o corpo está circulando nos grupos de pais, encaminhado sem piedade ou responsabilidade alguma.
Os vídeos compartilhados sem critério ou cuidado com a dor do outro revelam muito sobre o atual cenário. Há uma banalização da imagem, de tal forma que aquilo que é trágico perde o significado.
Me lembro de um paciente que atendi logo que me formei, quando trabalhava no Hospital, que era cameraman de um programa de acidentes de carro. Todos os dias filmando a morte, durante anos. Dizia que não sentia nada, até que seu braço, que segurava a câmera, paralisou. Pifou. Enquanto o ouvia pensava no quanto ele havia dissociado seus afetos, para seguir com o trabalho de edição de vídeos. Até que seu corpo gritou.
O adolescente da nova geração consome vídeos ininterruptamente, sem sequer refletir sobre o conteúdo daquilo que assiste – e há muito lixo intoxicante na internet. Também é refém do algorítimo, da pornografia virtual, das drogas sintéticas. Você sabe? Dá para comprar cigarro eletrônico por aplicativo. Eu te juro. Cogumelo também entregam em casa, bem embaladinho, não dá nem para ver. Também o catálogo de drogas é enviado pelo whatsapp, como um pdf de ovo de Páscoa. Coloridinho, com design e tudo.
Um adolescente me mostrou um grupo de whatsapp cujo objetivo era fazer uma vaquinha para ajudar o traficante, um brother -segundo ele, que estava na cadeia. Era um grupo de amigos que se unia para dar uma força para o sujeito que estava preso. Se mobilizando para ajudar a família a pagar advogado, mais de 50 nomes. Bem ali, eu vi, te juro.
Um jovem chegou na véspera de um feriado para a sessão de análise mostrando 50 envelopes de MDMA, que levava no bolso de seu casaco para repassar aos amigos com quem viajaria. Ela tinha ido a pé ao consultório naquela tarde. Quando a analista viu aqueles cristais todos despejados no divã de couro, gelou.
Você sabe? Uma menina de 14 anos foi filmada beijando o namorado, numa cena quente, numa festa e como a sogra não aprovava o namoro, o vídeo circulou no grupo de pais, afinal, não era uma boa moça para eles, da tal escola conservadora, era uma menina muito moderninha, dizia a sogra.
Tenho muitas meninas, no consultório, que sofrem o impacto de um nude vazado e morrem de medo de transar e serem expostas. Como dizia a personagem Rue, da série Euphoria, “Se você nasceu depois de 2010 certamente já teve pelo menos um nude vazado.”
Pacientes jovens apaixonados, tenho pouquíssimos, a maior parte tem horror a compromisso e morre de medo de se envolver com alguém. Entende sexo apenas como descarga e teme a intimidade. E Freud dizia em Sobre o Narcisismo em 1914 que era preciso amar para não adoecer. Mas para essa geração, todas as cartas de amor são ridículas. Ser emocionado – (como eles dizem) – está fora de moda.
Há também um aplicativo de contagem de dias sem se cortar. Após o trigésimo dia, você pode tatuar uma borboleta no pulso. Onde costumava se machucar. Borboletas no estômago são perigosas, mas tatuadas sinalizam coragem e #superação.
Mas calma, logo chegará setembro amarelo e tantas blogueiras vão tirar selfie fazendo biquinho #saúdemental, disfarçando de solidariedade o que no fundo é narcisismo maciço. E depois, chegará a selfie do outubro rosa, do novembro azul e todas as outras campanhas que surgem e fazem a gente apagar as cores das anteriores rapidamente. Os azulejos de banheiro brancos da Adriana Varejão manchados de sangue invadem minha mente. Nenhuma mãe merece encontrar um amor ali, esparramado e sem vida. Imagem poderosa, mas é preciso esquecer para seguir em frente, lembrar é doloroso. Esquecer que há uma geração á deriva, que num clique consegue encontrar na internet conteúdo perigoso sobre assuntos potencialmente fatais. Uma geração que não sabe nem se vai ter planeta para habitar quando adulta, como me disse chorando uma menina: “Não quero durar para sempre, igual plástico, para ver o que vai ser do mundo” – do alto de seus 16 anos.
Você sabe? Uma tragédia revela muitas coisas, tantas que é preciso falar, falar até gastar. Ainda que finalize cada frase desse ensaio com pesar, ainda que custe a chegar as palavras e falte-me ar. Mas é preciso falar, até que aquilo que estava oculto se revele em sua inteireza, cruel ou não. Escrevo então, para respirar. Para ventilar. Para que saibamos que enquanto tantas vozes jovens que padecem não forem ouvidas e levadas em consideração: o futuro é nebuloso e os corpos gritarão.
É fundamental saber, de fato, falar sobre saúde mental, de maneira consistente e que alcance genuinamente esse público.
Anne Alvarez em simpósio da SPPA, disse que por vezes é preciso ensinar o paciente a esperar, ainda que sem esperança. Eu aqui, no meu lugar de analista de adolescentes acrescento, humildemente, que nosso trabalho talvez seja também revolucionário, na missão de escutar uma geração que carece de sonhos, de encantamento.
Afinal, é sim preciso amar (a vida!) para não adoecer. E “Há tempos são os jovens que adoecem, e há ferrugem no sorriso”, como cantou Renato Russo da Legião Urbana dos anos 80.
É preciso ouvir, entender, falar sobre esse cenário triste que se anuncia, acolher as palavras, transformar aquilo que é aterrorizante. A psicanálise oferece um contato verdadeiro, de intimidade real, que resgata, re-inaugura, acolhe, fertiliza solos áridos, semeia ideias. E acima de tudo produz reparação.
No Natal do ano passado, tive acesso a um texto escrito por um garoto para o vestibular. Um presente esperançoso, para nós analistas. Nele ele contava sobre como sobreviveu ao ensino médio com depressão, era mais ou menos assim: “Após saber do suicídio de meu amigo, o compreendi, sentia a mesma coisa que ele. Fui até a varanda, olhei para baixo, me lembro da sensação do vento no rosto daquele dia. Mas em seguida eu pensei que teria análise naquela tarde mesmo, e talvez, mudasse de ideia.”
É preciso ser o apanhador no campo de centeio para que o futuro não caia no abismo.
Imagem: obra de Adriana Varejão, The Guest, 2004. Óleo sobre tela, 45 x 70cm
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e sociedade
Palavras-chave: Adolescência, Sexualidade, Internet, Bullying, Contemporaneidade
https://febrapsi.org/publicacoes/observatorio/observatorio-psicanalitico-op-323-2022/