ACABOU CHORARE

Foi numa dessas manhãs de isolamento, minha filha tropeçou e veio aos prantos para meu colo no café. Abracei-a com carinho e coloquei essa canção tentando distraí-la: “Acabou chorare, ficou tudo lindo, de manhã cedinho”. Ela logo se acalmou. Hipnotizada pelos acordes sutis, pela melodia de ternura da canção. Logo veio meu filho pelo corredor, curioso, para entender do que se tratava aquela letra esquisita que parecia uma canção de ninar.

Contei a eles, enquanto comíamos, que essa era a música de uma banda chamada Novos Baianos, e que a letra tinha sido inventada depois que um músico chamado João Gilberto contou uma história bonita: Uma vez, sua filha Bebel pequenininha caiu no chão e se machucou. Corajosa, prontamente se levantou, enxugou as lágrimas e disse: “Acabou chorare, papai.”

Desde então ganhamos uma trilha sonora matutina. Todo dia no café, embala as crianças. “Alexa, toca Acabou chorare!” -Ordenam.

Semana passada, num amanhecer gelado, os dois de pijama de flanela estavam sentados tomando leite e cantaram juntos baixinho: “Acabou chorare”. Juro, parecia até uma cena de filme. Bem aqui na minha casa, não era cinema, mas eu me senti num palácio, feito a Cinderella quando entra para o baile ergue os olhos e fica tomada pela beleza da festa.

Curiosa, fui procurar saber mais sobre essa canção e descobri que foi composta junto aos novos Baianos, na temporada em que João Gilberto morou com eles. Numa entrevista divertida, o finado Moraes Moreira conta que arrancaram as portas de um armário de madeira num quarto, improvisando um palco, em cima de umas gavetas, onde o João subia e dedilhava seu violão para uma plateia doce e barbara, feita por Baby Consuelo, Pepeu, Moraes, entre outros. Eram jovens, cheios de utopia e acreditavam num mundo melhor.

Fiquei por um tempo passeando pela letra. Imaginando que vai chegar um dia em que no jornal vai estar na primeira página: EXTRA, EXTRA: Acabou chorare, ficou tudo lindo. Acabou Covid, estabilizou a curva, acabou variante. Acabou falta de empatia. Acabaram as máscaras, acabou a pandemia.

Quem sabe a voz das crianças pudesse funcionar como uma espécie de prece, que pudesse ser ouvida em algum lugar desse mundo tão machucado, que diferente da pequena Bebel, não consegue se levantar sozinho e resgatar a fé em si.

ACABOU CHORARE

NO MEIO DO MUNDO

RESPIREI BEM FUNDO

Enquanto esse dia não chega, vou caçando alguma beleza na rotina, algum espaço de sonho, para dar conta da realidade tão crua.

Por vezes na vida é preciso fazer o show dentro do armário mesmo, dentro do quarto, no endereço do nosso mundo. Para isso é preciso liberdade para arrancar as portas pesadas de dentro da gente e se permitir imaginar.

Uma vez, após uma cirurgia de coração tão logo que foi extubado, meu pai pediu caneta e papel para uma enfermeira para escrever um conto. Era a história de uma fisioterapeuta respiratória chamada Julia que não desistia de lutar. Quando cheguei para visitá-lo, me entregou os papéis amassados nas mãos: Olha, filha escrevi um conto na UTI. Leia. E nessa hora, respirei bem fundo. Acabou chorare, papai.

Obrigada, João e novos baianos, por virem passear na garoa do meu coração cansado de tanto Chorare, me trazendo vozes renovadas e me confortando com vozes antigas.

Em alguns minutos, virei Julia e me lembrei da força de uma utopia.

E obrigada meus filhos, são vocês meu sapatinho de cristal.

Observatório Psicanalítico – OP 255/2021

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.

Helena Cunha Di Ciero
Psicanalista

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