ESTÁ CHOVENDO GELO OUTRA VEZ

Foi no filme Manchester a beira mar que a dor da melancolia foi tão claramente exposta, que a cena nunca saiu de mim.

O menino não conseguia enterrar o pai, pois o solo estava muito gelado por causa da neve. Como todo adolescente , aparentemente estava bem, mas na verdade, fervia.

Fervia quando ensaiava em sua banda de rock, fervia em seu silêncio de isolamento. Órfão,passou a morar com o tio – que por sua vez ,assombrado por um outro luto, não dava conta de acolher o adolescente.

E numa determinada cena, o jovem se vê tomado por um ataque de fúria. Abre a geladeira para procurar um jantar. E bandeja de carne que não entrava no refrigerador e teimava em cair, cai em seus pés. E, tomado pelo ódio, o menino chuta a geladeira tentando fechar a porta e aí tem um ataque dolorido de choro. Descontrolado.

Nada é dito , mas o que me parece é que a cena o remete exatamente a esse corpo-carne sem lugar, entre a geladeira e o chão lhe trouxe outra vez a lembrança viva desse pai tão querido. Sem lugar, sem espaço para cair no solo.

Estamos há um ano vivendo vendo pessoas caírem , sem lugar , sem pouso , numa porta que não fecha, um ciclo que não se acaba.

Eu já vi um jornal cheio de covas, corpos num caminhão, eu vi a catedral de Milão em silêncio. Eu ouvi São Paulo tão calada que chorei quando acordei com o barulho de um avião.O presidente da cidade luz está isolado, adoecido. Ganhei máscara de lembrancinha de aniversário de uma amiga. Fui em festa de criança no drive thru do Macdonald’s. Cada uma no seu carro , acenando de longe , doidas para descerem. Mas resignadas de um jeito tão adulto , tão comovente .

Estamos a um ano vivendo á sombra de um objeto que não vai embora – um objeto não identificado, como diria Caetano , tão invisível quanto letal.

Um ano mergulhado na melancolia, na sombra de um objeto como definiu Freud. Um ano cor de sombra.

Estou assistindo Caetano cantar nesse exato momento, Luz do Sol , em sua voz.

Onde anda o sol ? A glória da vida ? No meio de tantas sombras assustadoras e fantasmagóricas ?

E logo que me pergunto isso , já me vem à mente uma resposta com prontidão: A glória vem cada vez que eu luto por ela, com as máscaras, álcool , longe daqueles que eu amo. Nas festas pelo zoom que participei, nas festas em caixa que apareceram aqui em casa. Nas máscaras n-95 , nos pacientes que recebi virtualmente esse ano , na apresentação virtual do meu filho da escola ,que eu chorei para caramba. No ballet mascarado da minha filha. Na serenata que inventei para minha mãe no aniversário e convidei o prédio todo. Tentando deixá-la menos só.

A glória da vida está no amor , no acolhimento, na criação . No que a gente inventa para sobreviver. “O nosso amor a gente inventa” canta Cazuza , e seu poder derrete o gelo .

A noviça rebelde dizia para as crianças pensarem em campinas verdes, céu cheio de estrelas, gotas de chuva nas rosas e bigodes de gato – para espantar o medo. Colocava -as na cama e cantava para distraí-las do medo. Acolhidas,adormeciam e o terror partia. E se vendo capaz de acolher as crianças, o medo da noviça de sua incapacidade de ser uma boa babá passava.

Gente é pra brilhar, não para morrer de Corona .

Por hoje,teve Caetano.

E enquanto ele cantava ,quase mil melodias caíram em forma de gelo barulhento na minha janela. E eu me senti no quarto da noviça e não mais no Manchester á beira mar.

Como dizia Freulein Maria: Onde Deus abre uma porta em outro lugar ele fecha uma janela.

Helena Cunha Di Ciero

Psicanalista

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