O som da terra caindo.

As pessoas tem me dito, pelo menos uma vez por dia: Sinto muito.

E minha resposta tem sido, eu também. Mas nem sei se essa resposta dá conta do tamanho da minha dor.  Também sinto muito, vou sentir pela eternidade – qual a largura da eternidade ?

Pouco posso falar sobre o que sinto. Não tem nome.

Quando você estava doente , eu perguntava para quem já tinha perdido o pai o que eu ia sentir. Alguém me respondeu, um abismo. Talvez seja essa a melhor resposta. Ou a faxineira que me disse “meus pesos” talvez tenha sido a mais sábia.

Ao te ver doente, fraco, eu sentia um bisturi rasgando meu coração.

Tinha dias que mal te olhava pois não aguentava de agonia .

Mas o que dói mesmo e não poder chamar seu nome , pai. Hoje ao entrar no carro fiquei chamado: “Pai, pai “ para não esquecer o tom de voz que eu usava para te chamar. Era de noite, chovia e a cidade estava daquele jeito que você odiava. Claustrofóbica, cheia de carros aflitos, zonzos, iluminada pelo vermelho dos faróis , pelo negro da noite. Enquanto chamava seu nome, dirigindo  sozinha me dei conta que nunca mais vou chamar ninguém de pai.

A palavra pai é tão pequena, mas tem uma dimensão tão grande, chega a ser impossível falar com clareza sobre que eu sinto simplesmente por não poder te chamar mais, é o tal abismo, Pai.

Meu pai. Meu pai está morto há quinze dias. Quinze dias longos. Que o oxigênio custa a chegar quando acordo – Pai não combina com morte. Como se acostuma a viver sem o maior apoio que já conheceu? É uma sensação permanente de estar mancando.

Quinze dias em que meu filho aprendeu coisas novas que você não viu, pai.

Quinze dias nos quais me lembrei, no primeiro minuto em que abri os olhos, que você não existe mais em nenhum lugar, além de minha memória.

Seu lugar na mesa está vazio.

E seu armário está colorido com suas tantas camisas e dentro dele tem uma nuvem cinza, chamada saudade.

Suas roupas estão passadas ainda, nunca mais serão amassadas, estarão eternamente endurecidas pelo ferro. Adormecidas, imóveis.

Para sempre.

A dor da perda inundou a nossa casa. E você não viu. Não estava lá para nos proteger.

Fui num velório e a menina chorou tanto quando viu o pai no caixão.

E depois para enterrá-lo ela cantou a música italiana que ele tanto gostava.

Jogou a coroa de flores com o nome da família dentro da cova, para ir junto com ele. Para aquele monte de terra ficar menos marrom, para tingir as moléculas de areia que junto com o caixão dele  iam se decompor , então se misturar com a terra do mundo todo, e a partir daí, o corpo dele era do universo , podia chegar até o deserto do saara, aquele mesmo grão de areia que por menor que fosse ainda era aquele homem. Aquele que ela chamava de pai.

E quem sabe numa ventania, esse grão de poeira entrava de novo em casa e fazia um carinho no meu rosto feito quando eu era criança.

Mas a menina era eu, o pai era você e dessa vez eu não podia te contar essa cena triste- como sempre fiz com tudo o que já me tocou nessa vida. Dessa vez eu não podia compartilhar com você  isso que vivi.

E  senti um frio, um gelo . Uma ausência intensa, parecia um ferro cortando meu peito. Eu tenho feito tudo o que sempre fiz, pai. Tenho lutado, como você faria. Esse exemplo está vivo dentro de mim. Essa parte de você é imortal. Sua garra, eu herdei.

Com ela que eu conto quando falta o ar quando vejo minha mãe chorar . Quando não sei se vou suportar.

Ou quando preciso escrever, só para desabafar.

 

PUBLICADO NA REVISTA AMARELLO TEMA TERRA DEZ 2019

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