Nossa felicidade está para sempre ameaçada pois o bacilo da peste não morre nem desaparece pode ficar dormente por anos e anos em móveis e roupas aguardando sua hora em quartos, em porões, em baús, em lenços e em pedaços de papel. E virá o dia em que … para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordará seus ratos e os mandará para morrerem numa cidade feliz”.
Albert Camus, A peste, 1947
Estamos todos presos. Curiosamente, encarcerados em casa nos sentimos livres de adoecer. Mas ainda assim doentes de alguma forma, uma vez que estamos privados daquilo que nos mantém sãos. Os amigos de fim de semana, os abraços apertados em quem amamos. Nunca a pele foi tão importante e tão perigosa. Estar em casa nesse momento é nossa única arma de luta junto ao sacrifício que fazemos em nos distanciar de quem amamos.
Quem diria que um dia a distância seria prova de amor?
Diz Valter Hugo Mãe em A desumanização: ‘o inferno não são os outros, os outros são o paraíso. Um homem sozinho é apenas um animal, a humanidade começa nos que te rodeiam, não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas o desconhecido e sua expectativa”.
Hoje o que importa é estar saudável e zelar pela saúde daqueles que amamos. E nesse cuidado vem a necessidade de compartilhar. Compartilhar noticias, remédios promissores, campanhas de auxílio.
Empatia é a palavra da vez. É preciso olhar o outro, oferecer ajuda ao vizinho idoso, preparar uma “quentinha” para aquele que está só e poupar os exaustos profissionais da saúde.
Diz Freud em sobre o Narcisismo (1914): “É preciso amar para não adoecer, estamos destinados a cair doentes se em consequência da frustração formos incapazes de amar” e Renato Russo em 1980 cantou: “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”. É preciso cuidar hoje, o amor, o cuidado, nunca se fez tão urgente. O que temos é o agora: Eu ainda não adoeci hoje. Só por hoje aguentei outro dia em casa.
Foi no Peru que entendi a força da palavra compartilhar. Dizem os Incas que quando na Cordilheira dos Andes você cruza com um transeunte e tiver alimento para oferecer, é preciso compartilhar, como uma forma de gratidão por aquilo que a pachamama (mãe-terra) lhe ofereceu, assim aquele que caminhava se alimenta e aquele que estava só sentese acompanhado.
Estender a mão fisicamente não é possível nesse momento, mas oferecer ajuda sim. E isso tem sido a parte mais bela desse horror que estamos vivendo.
Em que momento nós humanos arrogantes esquecemo-nos que a impotência faz parte da experiência de estar vivo? Atualmente todos estamos curvados a algo tão poderoso quanto invisível. Nossa geração arrogante do selfie, tão desesperada para sentir- se vista hoje se esconde em casa buscando proteção.
Ao mesmo tempo, até as redes sociais mudaram: O look do dia perdeu o sentido. A bolsa da moda, a maquiagem, nada disso tem serventia nos dias de hoje. As lives estão mais frequentes afinal, todos estamos vivos e é preciso compartilhar essa experiência. A nova #hasthag é: Compartilhe seu dom. O luxo agora é estar vivo. Mesmo que de chinelo e de pijama. Luxo agora é ter abrigo. Saúde. Alimento. Máscara.
Na semana passada fui pegar o tal álcool gel e na volta, a rua do meu itinerário estava fechada. O guarda de trânsito veio na minha janela avisar que a rua estava bloqueada. Agradeci e sem pensar muito disse: Saúde você e para sua família. Meus olhos encheram de lágrimas. Percebi que ele ficou também comovido.
Enquanto dirigia, fiquei pensando quando na minha vida eu teria tido a chance de desejar algo com tanta profundidade á um simples desconhecido.
A proximidade da morte também nos compartilha crescimento além da dor. Nem toda a privação é perda apenas. Talvez a única forma de tolerar o que estamos vivendo seja buscar sentido nessa privação. Ainda que o sentido seja nos revelar num espelho o quanto estávamos distantes do que é ser humano de fato. E o quanto vínhamos andando afastados da qualidade que essa experiência pode nos proporcionar.