Quando a sala de espera do analista é o mundo: entrevista com Marie Rose Moro
Cláudia Amaral Mello Suannes; Eduardo de São Thiago Martins; Eliane Saslavsky Muszkat; Helena Cunha Di Ciero Mourão; Marielle Kellermann Barbosa; Paula Freitas Ramalho da Silva; Rodrigo Lage Leite
Membros filiados ao Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Marie Rose Moro é psiquiatra infantil, professora de psiquiatria da criança e do adolescente na Universidade Paris Descartes, Sorbonne-Cité (Paris, França) e psicanalista – SPP (IPA). É chefe do Departamento de Medicina Transcultural e Psicopatologia do Adolescente, Maison de Solenn, Maison des adolescents do Hospital Cochin (Paris, França). Criou e é a responsável pelas consultas transculturais destinadas a bebês, crianças, adolescentes e suas famílias, no Hospital Avicenne (Bobigny) e Cochin (Paris). É também chefe de fila da psiquiatria transcultural na Europa, diretora da revista transcultural L’autre (www.revuelautre.com), presidente da Associação Internacional de Etnopsiquiatria (AIEP) – www.clinique-transculturelle.org / www.transculturel.eu. Professora convidada para conferências em vários países, ela escreveu inúmeros livros e artigos internacionais em inglês, francês, italiano, alemão, espanhol e português.
IDE – Boa tarde. Gostaríamos de começar esta entrevista primeiramente agradecendo a sua disponibilidade. A primeira pergunta é sobre a formação psicanalítica ou, mais especificamente, sobre uma possível elitização na formação psicanalítica. Comparativamente, o preço da análise didática em São Paulo é um dos mais altos do mundo. Nos Estados Unidos há preços altos, mas muitos têm planos de saúde que cobrem 70 a 90% dos valores. Assim, muitas pessoas não fazem a sua formação no nosso Instituto por questões econômicas. Tendo em vista esses dados e sua ampla experiência com o trabalho psicanalítico gratuito, com migrantes e refugiados, em locais públicos, gostaríamos de saber sua posição no que diz respeito aos aspectos políticos e econômicos da formação.
Marie Rose Moro – Sim, claro. Esses aspectos políticos gerais e de formação são, para mim, muito importantes. Hoje, se queremos que a psicanálise siga sendo algo que mude a vida e a mente, algo revolucionário, como foi quando Freud a inventou e a imaginou, se queremos que ela siga tendo potencialidades criativas e transgressivas, como deve ter a psicanálise para mim, esse ponto é muito importante… Podemos perguntar: “Onde estão os negros na psicanálise? Onde estão os pobres?”, ou mesmo, em alguns momentos: “Onde estão as classes médias?”, não? Isto é, só procuram a psicanálise aqueles que querem ser psicanalistas? Então há um perigo ideológico – somente entre nós será possível falar do mundo, de um mundo pequenino, portanto, de um pedacinho de mundo, aquele que somos capazes de ver por nossa janela. Ou será o mundo de todos? Porque a única maneira para se ter acesso ao mundo é que ele seja de todos, porque a dimensão coletiva, ética, também tem a ver com o fato de que somos todos iguais, trata-se de algo da universalidade psíquica e ética. Está claro que temos que mudar a questão do preço… Se é tão grande o esforço, se é tão demasiado no sentido financeiro, também o é na vida, e em vez de ser um meio, a psicanálise passa a ser um objetivo em si, algo que se faz para ser psicanalista e nada mais, ou depois para os pacientes. “Para que serve a psicanálise” passa então a ser secundário, enquanto deveria ser primário, não? Eu trabalho muito com minorias, com migrantes e com refugiados, com populações marginalizadas que vêm do mundo inteiro – temos o costume de dizer que nossa sala de espera é o mundo, e me parece muito importante que a psicanálise seja para todos e que se abra a outras metodologias. Por exemplo, a psicanálise é capaz, e o faz em certos momentos, de se integrar à antropologia ou à linguística para poder se abrir a todos, a todos os países, e em uma relação que não seja uma relação colonial. Essa abertura é necessária para que em Londres, ou aqui, ou no Peru, não só os que pertencem a uma classe social alta e globalizada possam ter acesso à psicanálise. Para isso necessitamos mais simplicidade do que temos agora; creio que temos que pensar sobre os settings, os idiomas, a maneira de funcionar juntos, tudo para que possamos nos adaptar a todos os pacientes e estabelecer com eles uma relação autêntica. Um bom exemplo é o número de sessões – para vocês são quatro, em alguns lugares são cinco, em Paris são três, não há obrigação de serem quatro. E eu diria que para alguns pacientes é uma vez por semana e é psicanálise. Mas então seria de extrema importância que, mesmo na formação, se aprendesse a pensar com o paciente quantas sessões são necessárias, quantas para que possa se apropriar da psicanálise, para que tenha mais liberdade, para que possa mudar… Entretanto parece que pensamos de maneira contrária – “devo propor quatro”, e assim não há aprendizagem quanto à indicação ou quanto à importância da temporalidade.
IDE – E mesmo quanto à relação.
MRM – E mesmo quanto à relação, com algo de que somos totalmente dependentes durante a formação – o fato de que o paciente deve seguir com suas quatro sessões, não? Então aí há algo, mas creio que se deva pensar sobre isso coletivamente, porque também se pode ter como consequência uma formação que seja um pouco como “em falso self“, ou seja, sabemos ao que temos de nos adaptar e nos adaptamos a isso. Na realidade, seria melhor que em nossa formação fôssemos aprendendo tudo o que necessitamos, sem ter um quadro rígido que não corresponde à vida de hoje.
IDE – Você acha que faz sentido discutir a questão do acesso à formação psicanalítica a partir de uma reflexão sobre a ética institucional? Isto é, em que medida a exclusão de pessoas que não têm recursos financeiros para arcar com a formação deixa de fora pessoas que estão interessadas na psicanálise? Há um viés ideológico no acesso que empobrece a psicanálise?
MRM – Sim, claro que excluir pessoas de fato, e não de princípio, excluir pessoas porque não podem ter acesso à formação, é uma maneira de empobrecer a psicanálise. Hoje se vê que alguns alunos não podem ter acesso aos grupos psicanalíticos, não somente no Brasil, mas mesmo na Europa, e esse é um processo de empobrecimento e de marginalização para a psicanálise. Não falo apenas quantitativa, mas qualitativamente, de pessoas que têm vivências, experiências, modalidades de vida diferentes; o fato de não terem acesso e de não poderem utilizar sua criatividade na psicanálise é lastimável. E não se trata somente das mar-gens, mas de toda a sociedade. A psicanálise pode ter o interesse de que todas essas pessoas que querem aprender possam fazê-lo, de que a sociedade psicanalítica seja representativa de toda a sociedade e não apenas de um pequeno grupo.
IDE – Na sua conferência hoje havia muitas pessoas, muitas delas jovens profissionais que trabalham em centros de saúde pública em São Paulo, isto é, profissionais que estão nos espaços públicos e que têm interesse pela psicanálise. Em que medida a formação clássica dos institutos oferece a essas pessoas subsídios para poder pensar a clínica, que não é a clínica padrão, não é a clínica de alta frequência? Em que medida os institutos de psicanálise estão de fato interessados em oferecer formação para quem trabalha nesses lugares?
MRM – Creio que esta é uma característica muito positiva da psicanálise, a possibilidade de abrir pensamentos, de abrir possibilidades, de dar também grande importância à contratransferência, ao que vivemos, ao que sentimos e, ainda, que isso seja algo que nos ajude a trabalhar. Portanto, o fato de haver psicanalistas nas instituições associativas ou públicas, ou em redes, é muito importante. É verdade que hoje eu olhava as pessoas na conferência e via muitos jovens; muitos me disseram que trabalham em instituições públicas ou associações, e é uma sorte que assim seja. Se essas pessoas querem se capacitar e entrar em nossos locais de formação, temos que abrir nossos seminários, nossas formações e tudo isso a elas, porque também acredito que pode haver diferentes níveis de transmissão. Nossa psicanálise, como nossa formação, deve ser aberta. Uma coisa é ser psicanalista, mas também se pode buscar algo na formação que não é ser psicanalista, mas uma habilidade, algo que ajuda a fazer clínica e a ser um bom terapeuta. Por exemplo, esta manhã falamos de empatia metaforizante, um conceito de Serge Lebovici; mesmo não sendo de um psicanalista, esse conceito é muito importante para trabalhar nas instituições com crianças – como, a partir de nossa capacidade de identificação e de empatia, agimos com as crianças e com os pais? Devemos agir inventando a clínica sempre, e para todos. Não manter algo de uma repetição ou de uma interpretação dos textos iniciais e nada mais, algo repetitivo e um pouco mortífero. Como com a tradução: traduzir um texto é reinventá-lo. Reinventamos e trazemos coisas novas, há algo de um movimento de vida e de um movimento de transmissão. Por isso esta reflexão sobre o processo de formação e suas modalidades é tão importante. Me parece muito interessante haver em São Paulo uma associação de candidatos, ou seja, que os candidatos legitimamente pensem e trabalhem sobre o fato de que participam da formação e não são apenas receptáculos passivos, como passarinhos: “ponho uma uva na sua boquinha e vamos ver se a come bem”.
IDE – Essa é uma situação muito diferente de outros institutos na Europa, por exemplo, onde os candidatos parecem ter mais uma posição de alunos.
MRM – Sim, sim…
IDE – Aqui é um pouco diferente.
MRM – Por isso é interessante o seu projeto de sustentar várias palavras e de poder falar, quando se é aluno, da maneira mais igual e ativa possível.
IDE – Quanto aos diferentes caminhos possíveis de transmissão, não é necessário que a psicanálise chegue à sociedade, ou mesmo ao mundo, através de psicanalistas formados de maneira clássica, não é? Ou seja, você fala de caminhos possíveis para que o conhecimento psicanalítico possa se infiltrar no mundo e possa chegar ao mundo de uma maneira criativa, sem ser por essa via clássica da formação do analista.
MRM – Sim, e se pode dar um exemplo com o conceito de contratransferência. Freud teorizou de maneira magistral a transferência. Se se procura nas Obras completas de Freud quantas vezes a palavra “transferência” aparece, são muitíssimas. E haver conceitualizado e operacionalizado a transferência é a verdadeira revolução dele, em nível técnico. Depois chega a contratransferência na obra de Freud, mas com muito menos ocorrência da palavra, para Freud trata-se de algo quase mecânico, somente uma reação à transferência – eu transfiro sobre você e você, o psicanalista, tem uma reação; se o coloco num lugar paterno, você vai aceitar ou modificar um pouco o que projeta sobre si. A contratransferência seria, como diz a palavra, somente uma reação à transferência. Depois, autores como Georges Devereux, um etnopsicanalista, mas também muitos outros psicanalistas nos Estados Unidos, por exemplo, começaram a pensar que, como nós também somos humanos, mesmo quando somos analisados, não somos transparentes – menos mal, temos sentimentos, história… Nós, como pessoas, como seres, nós como terapeutas e psicanalistas também, temos vivências, temos gênero, temos filiações, temos cor de pele, temos cultura, portanto não só reagimos à transferência, mas vivemos e projetamos sobre o paciente. E ainda pode haver diferenças culturais, por exemplo, uma vez que temos reações a partir disso, implícitas e explícitas, inconscientes e conscientes. O que acontece, então? A contratransferência é algo muito mais completo, é algo que tem a ver com a transferência, é tão completa e tão complexa quanto a transferência, não é simples, não é uma questão mecânica. Quando Devereux inventou a etnopsicanálise, disse: “a contratransferência é a segunda revolução metodológica”. Para ele, a contratransferência é o que devemos trabalhar e elaborar mais, é uma fonte imprescindível de saber sobre nós mesmos e sobre o paciente. E porque estava preocupado com os aspectos culturais, Devereux imaginou que a contratransferência tinha duas dimensões, a dimensão afetiva e a dimensão cultural. E se é tão importante, esta contratransferência cultural de Devereux não pode existir somente na psicanálise de quatro ou cinco sessões por semana, mas em todas as situações em que há interação entre uma pessoa e outra, isto é, no ensino ou na investigação, em todos os intercâmbios clínicos, mesmo se não são sessões psicanalíticas clássicas. E a partir daí imagina-se, por exemplo, que podemos trabalhar a contratransferência em muitos níveis. Só se trabalha no nível inconsciente quando se é capaz de trabalhar nele, ou seja, no setting psicanalítico clássico; mas em muitas situações se pode trabalhar em outros níveis de contratransferência e isso é muito interessante. Claro que os psicanalistas podem fazê-lo de maneira mais aprofundada, mas com esse exemplo eu queria ilustrar o fato de haver um conceito, porém com níveis diferentes, que se pode aplicar em situações diferentes. E é normal, porque a psicanálise não é algo totalmente estrangeiro à vida. E depois, sim, pode haver diferentes graus de análise dessa contratransferência.
IDE – E esse grau está relacionado a um setting especifico? Você trabalha principalmente em espaços públicos. Qual é a diferença, nesse aspecto, entre o trabalho no espaço privado do analista, no consultório em que o paciente chega, e o trabalho em um espaço público?
MRM – Há bastante diferença, mas a posição segue sendo a mesma. Quando o paciente vai ao consultório do psicanalista, pode-se pensar, por exemplo, que já sabe que ele pode ir, como se faz, como as coisas vão se passar, sabe que pode pagar; sabe algo, do contrário, não vai. O paciente fez uma escolha, então há uma proximidade grande. É algo um pouco endogâmico, não? Nesse caso, não é necessário explicar tudo, porque muito já é compartilhado, o mundo do psicanalista é muito próximo do mundo da pessoa que vai a um consultório e, por isso, o encontro é possível. Então, todo trabalho de construção, de coorganizar, de copensar tudo isso, é mínimo, porque há uma pré-relação, uma pré-transferência, um marco comum. Nessa situação nascem as ideias de demanda e tudo isso. Mas quando se está num sítio coletivo e público, espera-se que venha a esses lugares gente diferente do seu mundo social, do seu mundo cultural, que não sabe exatamente o que pode esperar ou pedir… O que essas pessoas sentem é a necessidade, mas não têm uma demanda precisa e algumas não sabem o que você pode oferecer a elas; têm um mundo que, na melhor das hipóteses, você conhece de maneira distante, ou nem conhece. Nessas situações, claramente deve-se trabalhar a relação entre o íntimo, o intersubjetivo e o coletivo, porque para criar uma relação que seja realmente uma relação, vamos dizer, psicanalítica, você deve desenvolver os diferentes níveis, do contrário, não se encontra o paciente, não se pode estabelecer relação – uma relação que tem um sentido igual para você e para ele, porque para você vale, mas para ele também, há de ser coerente. Portanto há uma diferença muito grande entre essas duas situações. Eu, claro, sou militante de uma psicanálise para todos, aberta à sociedade e ao mundo em complemento ao que se faz nos consultórios. A psicanálise em nossos consultórios é um pouco experimental e seguramente minoritária. Todo o resto do mundo fica onde se pode fazer esse tipo de clínica, mesmo em contextos humanitários, por exemplo, nos quais não se espera que se solicite um trabalho analítico, mas necessitam dele e ele também é possível.
IDE – Você acha que seria fundamental que um analista em formação tivesse essa experiência de trabalho num espaço público, fora do setting clássico? Você acha que isso deveria ser mais estimulado pelos institutos de formação?
MRM – Meu amigo, que já não está aqui, o grande Salvador Celia, havia imaginado, em Porto Alegre onde trabalhava, que as pessoas que queriam ser psicanalistas pudessem passar, assim como faziam os estudantes de medicina, um ano com um bebê em um local – uma instituição, uma favela ou onde vivessem os bebês -, para aprender o que é um bebê, porque isso seria muito importante para ser psicanalista. Acompanhar um bebê em um lugar como um bairro pobre durante um ano para aprender o que é o desenvolvimento e o que um bebê necessita. Era uma ideia muito simples, mas muito linda.
IDE – Em uma cultura diferente da dele.
MRM – Sim, em outra classe social ou em outra cultura, diferente da dele. Eu falava isso para dizer que me parece muito importante, mesmo se você não é psicanalista de crianças. Mas, seguindo a mesma ideia, diria que um psicanalista no século XXI, mesmo se ele quiser ter uma clínica de consultório e nada mais, que seria necessário, sim, trabalhar um tempo suficiente em uma instituição pública para viver essa experiência de ver o mundo a partir de outra perspectiva.
IDE – A experiência do assombro, do estranhamento?
MRM – Eu diria mais da pluralidade da humanidade, de abrir a mente, de ter a experiência de que quando você trabalha com pessoas que não conhece, que não habitam os mesmos lugares, primeiro se dá conta de que há algo comum no trabalho clínico e psicanalítico de cada um, depois, você aprende. Porque, como são mundos que não conhece, você aprende coisas sobre esses mundos com os pacientes – há uma expressão em francês, não sei se é utilizada em espanhol e em português: “você se deixa afetar”; e isso o transforma, creio que o torna melhor, uma pessoa melhor, mas melhor psicanalista também, porque é algo que você vai experimentar, que é possível, que é bom, você tem algo a ganhar.
IDE – No seminário de ontem, você trouxe a imagem de uma mãe africana que amamentava um bebê de um mês e meio de um jeito que, para nós, poderia ser um pouco perturbador. E, a partir dessa experiência, você apresentou o conceito de descentramento da nossa visão, isto é, a ideia de deixar de lado nossas teorias, nossa cultura, nossas expectativas…
MRM – Sim, eu também aprendi esse conceito, porque não o conhecia de maneira espontânea, aprendi com professores psicanalistas e investigadores transculturais ou interculturais; por exemplo, sobre os bebês e as diferentes maneiras de cuidar deles aprendi com Hélène Stork. Ter essa experiência de perceber que em uma situação se pode olhar de diferentes pontos de vista e não ver o mesmo… No seminário de ontem, mostrei uma mãe e um bebê em um campo de refugiados na África, e a mãe fazia o bebê dormir de uma maneira tão singular que para nós parecia violenta, mas não era. Isso poderia ter acontecido numa instituição, não importa qual, a maneira de cuidar dos bebês pode diferir muito de um lugar para outro. E pode-se pensar a respeito teoricamente, mas depois, quando se observa a maneira que a mãe tem de amar esse bebê e de interagir com ele, é muito diferente. Quando falei ontem sobre isso a esse grupo de psicanalistas brasileiros especializados em bebês, todos gritavam, falavam uns com os outros, porque é tão diferente da nossa maneira de fazer que provoca uma contratransferência muito negativa: “o que acontece com esta mãe que chacoalha um bebê de um mês e meio assim?”. Então depois conversamos, fizemos um exercício de descentramento antropológico, porque a palavra é essa – descentramento. Expliquei as diferenças entre interações proximais e distais e lhes disse que eram capazes, com aquelas explicações, de ver muito melhor o efeito real sobre o bebê, e viram que o efeito era muito positivo. No entanto, num primeiro momento ninguém o via, só viam a diferença de como essa mãe cuidava… E, se é diferente, então não é bom!
IDE – E qual é o exercício, o trabalho?
MRM – O trabalho é de contextualizar e não de dizer: “se faz assim”, é de olhar o bebê, explicar o contexto cultural e aceitar o ponto de vista da mãe, que tem um saber sobre como fazer. Então quando você volta a olhar de outra maneira, você vê o bebê e o verdadeiro efeito da maneira de cuidar sobre o bebê. É bastante simples, não? É simples. Mas o que não é simples é ter a hipótese de que se deve modificar o seu centro, que não se deve comparar a si, que não se deve comparar algo que não se conhece ao que se conhece, porque naturalmente comparo o que não conheço ao que conheço, ao meu. Deve-se deter este movimento, um movimento epsitemológico natural, ou melhor, nada natural, mas cultural. Sempre, para aprender, comparamos, não? E se deve mudar isso. Não podemos comparar, temos de pensar que o centro é ela, a mãe, é ela que detém o sentido. Por isso creio que este trabalho de descentramento é pura psicanálise, porque é realmente pensar que o outro é o centro e que não sou eu. Por isso não se faz de maneira espontânea, tem de primeiro parar o movimento, contextualizar, descentrar…
IDE – Sair de um lugar do analista que sabe tudo e ser, como diz Ogden, o analista que o seu paciente precisa que ele seja. Ser o analista que entende aquela existência, não?
MRM – Dizemos, mas não fazemos isso.
IDE – Às vezes se diz que a clínica de crianças muito facilmente se torna prescritiva. Nesse sentido, em que nível é possível o diálogo da psicanálise com as neurociências, que acabam reforçando esse papel das normas, da prescrição? No caso relatado, vemos a cultura intervindo e tendo um efeito no desenvolvimento do bebê. Então, é possível um diálogo?
MRM – Eu creio que sim, é possível… Primeiramente, quanto à questão das normas, é verdade que na clínica de zero a três anos, a clínica dos pequeninos, há esta tentação de normatizar e dizer como se deve fazer, como a mãe deve fazer, mas acredito que isso não ocorra somente para essa idade; de maneira geral, temos que ter cuidado porque a psicanálise pode, facilmente, como todas as outras teorias, ser realmente normativa. Posso dar um exemplo? Qual é a família que necessita de uma criança? Uma família nuclear, ampla, heterossexual, homossexual, uma mãe, um pai, vários? Temos este risco de ser normativos, e isso é uma proteção e uma habilidade, ainda que desejemos ver as coisas do ponto de vista da singularidade e da subjetividade. Então, creio que sempre se deve trabalhar isso e buscar modalidades de descentramento. O coletivo também nos ajuda, porque quanto mais estamos sós, trabalhando em nossa clínica, mais podemos ter esta tentação da norma; mas também podemos decidir de maneira ideológica, como dizia antes, quais são as nor-mas. Assim, trabalhar junto de outros em uma instituição, fazer supervisão com gente diferente, sempre é algo que permite uma abertura. Ainda que esteja claro que não é suficiente. Então utilizamos a antropologia, a linguística, a história, as neurociências e diferentes disciplinas. A antropologia, por exemplo, é muito forte na desconstrução das normas – parece que uma família é algo muito evidente e um antropólogo dirá que sim, seguramente há aspectos invariáveis, não sabemos exatamente quais, mas há muitas variáveis; e outras tantas vezes os antropólogos dizem que há estruturas familiares muito diferentes e que, além disso, as vivências dessas estruturas são múltiplas. O que faz uma família é também a maneira de viver em família, não? Está claro para mim que a antropologia ajuda muito a não sermos normativos porque nos faz questionar aquilo que pensávamos ser evidente, como o que necessita uma criança e tudo isso, coisas muito simples, mas que são aquilo que se passa com os nossos pacientes. E então chegamos à questão das neurociências… Eu diria, do ponto de vista do princípio, que é necessário ter um diálogo com todas as disciplinas e com as neurociências em particular, mas um diálogo com método, isto é, dialogar com as neurociências não quer dizer renunciar à nossa epistemologia. Então, para mim, o diálogo com a neurociência é importante. Não sou especialista, mas gosto de tentar compreender como funcionam as coisas novas, procedimentos novos, mas o perigo, e não creio que seja um perigo somente das neurociências, é reduzir a importância da subjetividade e da liberdade do paciente. Por exemplo, as ciências cognitivas utilizadas de maneira rígida empobrecem a subjetividade e a singularidade, então não é esse o objetivo, não é um enriquecimento. Por isso penso que se deve realmente buscar formas de trabalhar sem se renunciar às nossas maneiras de fazer, mas também não temos que estar fora do mundo, estamos no mundo, com as coisas novas e as mudanças… Um exemplo: na Europa, há equipes de investigação que fazem ressonância magnética em pacientes que iniciam terapia; antes de começar, fazem uma, depois repetem a cada três ou seis meses e ao final da terapia, e veem mudanças no cérebro. Então dizemos: “que bom, que bom”, mas não sabemos muito mais, mas sim, podemos saber. Há um diálogo interessante, é o que quero dizer, não é suficiente só observar a mudança, pois, além disso, qual é a sua causa? Qual é a consequência? Há coisas difíceis de compreender… Mas esse tipo de trabalho permite um diálogo para compreender além do que sou capaz de pensar – com a terapia o paciente tem outra maneira de ver o mundo, o bebê… Quando você muda a sua maneira de pensar e de sentir, tudo muda, como se o mundo estivesse pintado de rosa, não? Bem, então seguramente algo muda realmente, mas isso não quer dizer que basta estimular uma área cerebral. Como a pessoa entra nesse processo de transformação? Em relação a isso, nesse momento, a clínica segue totalmente indispensável.
IDE – Para finalizar, você poderia falar sobre os conceitos de Édipo freudiano e do Édipo transcultural?
MRM – Vou tentar resumir um século de literatura aqui. Freud, observando, ele mesmo, um pouco as crianças, inventou um conceito e foi buscar um mito na classificação dos mitos, uma versão do mito de Édipo. Sabem que há muitas versões dos mitos, certo? Bem, ele escolheu uma variação, a variação que correspondia o melhor possível àquilo que sentia, ao que havia observado em si mesmo. Contudo, essa variação, essa versão do mito que escolheu é uma versão muito minoritária, é uma versão de “um mito iniciático que não funcionou”. E por que não funcionou? Porque você deve matar o seu pai, certo? Então deve matar outra pessoa para existir por si mesmo. Então, primeiro, num momento histórico muito forte de Viena, muito repressiva em termos de sexualidade e tudo isso, portanto, em um momento histórico particular, em um local particular e se observando a si mesmo, Freud vai construir um conceito e utilizar para este conceito o mito de Édipo, porém uma versão minoritária desse mito. E, em um dado momento, tudo isso funciona bem, porque havia coerência entre tudo isso. Mas, no mesmo momento, e como o fazem as pessoas que inventam coisas novas e importantes, Freud se perguntou: “será que isto é universal?” – claro, era tão particular e inscrito num local e num momento, que a pergunta era legítima e ele a colocou desde o início. No entanto, não havia método transcultural na época, não havia método para saber se era universal, a antropologia quase não existia realmente, sendo parte da filosofia. Bem, ele começou dizendo: “vamos ver o que acontece”, e enviou psicanalistas a sociedades matriarcais, em que as estruturas familiares eram muito diferentes e a transmissão, a herança e tudo isso, passa pelo irmão da mãe, o tio materno. Os psicanalistas foram a esses locais, observaram, viram o que puderam ver, porque sempre é assim quando não se pode descentrar, e voltaram dizendo: “ah, sim, é quase igual, há uma pequenina alteração, em vez de serem voltadas ao pai, as coisas são voltadas ao tio materno, mas de resto é igual”. E os antropólogos disseram: “não, isso não tem nenhuma ciência, isso não é ciência… Vocês foram com as suas bolsas e voltaram com o que têm nas bolsas, não viram nada”. E Freud disse: “pois que vão os antropólogos e observem”, e os antropólogos foram e não encontraram o mito de Édipo, o material edípico; regressaram e os analistas disseram: “mas claro, vocês são antropólogos, não sabem buscar o material intrapsíquico, por isso não viram nada”. E assim ficou, porque houve muitos textos, mas nada que pudesse convencer totalmente. Até que chegou um momento em que psicanalistas da Índia, do Sri Lanka e depois da África foram a Londres, foram a Paris, a Berlim ou a Nova Iorque e regressaram aos seus países – não todos, porque alguns ficaram, mas alguns regressaram. Nesse momento eles eram pessoas dessas culturas e não haviam sido, digamos, aculturados pela psicanálise, e, ao regressarem, alguns pensaram: “o que aprendemos só vale para pessoas de classe muito alta, globalizada e que se parecem em todos os países porque têm uma cultura comum”, e se sentiam como que cortados de seu povo, de sua gente. Então alguns começaram a abrir as portas de seus consultórios, a ir a instituições e a tentar propor algo que fosse psicanálise, mas que tivesse a ver com o que as pessoas pensam e fazem. E também com as habilidades das pessoas. E, quanto ao Édipo, voltaram um pouco contestando, perguntando, discutindo: “isso não é tão simples, há muitas coisas diferentes”. E estes psicanalistas autóctones, vamos dizer, que não renunciaram às suas culturas, vão trazer coisas muito novas à questão do Édipo, porque vão permitir uma desconstrução do Édipo. Bem, resumo aqui de maneira muito breve, há muitos artigos sobre isso. Depois destes trabalhos feitos na Índia, no Sri Lanka e na África central, o que se pode concluir é que a primeira parte do Édipo – os movimentos de identificação, de agressão ao pai, à mãe, de contraidentificação – se parece em muitos locais, é muito frequente no mundo; não se pode dizer que é universal, porque não o sabemos, seria necessário ir a todos os lugares do mundo. Mas a segunda parte, que é a parte de como se vai construir a própria posição, a própria identidade, matar o pai, sair do Édipo, reconstruir elementos de identidade e separação do estigma paterno ou materno, isso não é universal, é totalmente dependente do que sustenta a cultura, do que propõe a cultura, do que escolhem os membros de uma cultura. E então aí se encontram as variações do Édipo, de uma certa maneira.
IDE – Os vários destinos subjetivos.
MRM – Vários destinos subjetivos do Édipo, vários. É muito importante saber, mesmo que não se saiba quais são, que há vários destinos.
IDE – Vários arranjos possíveis.
MRM – Sim, vários arranjos, porque se você tem isso na cabeça, que só há um destino possível, uma saída do Édipo, claro, mesmo que não diga nada…
IDE – Tem isso como norma.
MRM – Exatamente. E voltamos à questão da norma. Se o arranjo é único, é como uma norma. Então se o paciente quer escolher outro caminho, de certa maneira, você não vai valorizá-lo, não vai sustentá-lo por não ser capaz de pensar nele, ou mesmo de tê-lo em mente. Por outro lado, se você faz a hipótese transcultural, de que há vários destinos possíveis, vários arranjos, então ainda que não saiba os destinos desses movimentos, você vai abrir e vai permitir realmente que a pessoa elabore isso e encontre o seu lugar, que você não sabe exatamente onde é, não é mesmo? No âmbito cultural e mesmo no individual. Deve-se permitir o múltiplo, e é muito importante esse nível contratransferencial. O outro argumento sobre não ser o Édipo universal e estar inscrito num contexto é o fato de que o período de latência não é universal, sai-se dos movimentos de identificação do Édipo (primeira fase do Édipo) quando o contexto permite e de várias maneiras. Mas, para compreender isso, deve-se utilizar a distinção que Devereux fazia entre infantil e pueril. Devereux imaginou uma distinção entre o que é infantil, ou seja, que pertence ao desenvolvimento intrapsíquico intrínseco, e o que é pueril – as projeções, o que as pessoas, os pais e a sociedade projetam sobre a criança particular e o grupo de crianças, que é diferente também de uma cultura para outra. Então o desenvolvimento da criança é a soma do que é infantil e do que é pueril e depende das expectativas dos pais, do grupo e da sociedade. Com essa dimensão pueril, o contexto participa do desenvolvimento da criança. O corpo, a mente, os grupos e a cultura têm relações necessárias e imprescindíveis, por isso uma criança só não existe!
1 Realizada pela Associação dos Membros Filiados (AMF) e a ide. Em 18/03/2017.
ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL DE PSICANALISE